domingo, 28 de setembro de 2014

Sexo x Bíblia: muito barulho por nada...

... e se você pensou que ia chegar aqui e me ver defendendo alguma tese de viabilidade do sexo fora do casamento “à luz” dos textos da Bíblia se enganou. A Bíblia, enquanto livro, é bastante clara no sentido de reprovar essa prática.
E então você pode estar se perguntando: mas sobre o que será o texto se vai se falar sobre o que todas as igrejas já falam? E eu respondo que o texto vai querer fazer uma abordagem histórico-humana que leva a essa tendência a uma redação proibitiva.
É certo que no Novo Testamento ninguém abordou mais a questão da sexualidade do que Paulo. Mas quem era Paulo? Paulo era um judeu, fariseu, cujo nome hebraico era Saulo, bastante zeloso pela lei de Moisés, altamente instruído, o que lhe fazia admirado pelo seu gênio (moldado aos pés do mais famoso rabino de sua época) e pela sua eloquência. Ele foi escolhido pelos seus compatriotas como membro do Sinédrio, e era um rabi de notável capacidade sendo, também, cidadão romano em título herdado de seu pai.
Paulo era inteligentíssimo e a sua ascensão às camadas mais altas no poder religioso de então só atestam mais essa informação. Certamente, aluno de Gamaliel que foi, não estudou apenas a respeito das leis mosaicas, mas também conheceu e foi bem instruído a respeito da filosofia grega e a sua evolução.
Mas também precisamos conhecer os povos para quem Paulo mais pregou sobre sexualidade: Corinto, Tessalônica e demais regiões que à época, dominadas pelo Império romano, correspondiam ao território do que um dia foi a Grécia e hoje é a Turquia. Ainda assim, acham-se referências a comportamentos sexuais também nas cartas aos Gálatas, aos Romanos e aos Colossenses, em cujo mote central repousa no aconselhamento contra “adultério”, “lascívia” e “fornicação”.
Antes de qualquer coisa, cumpre fazer uma crítica a um costume adotado na interpretação literal apresentada pelos exegetas bíblicos. Fornicação é o sexo experimentado única e exclusivamente em nome do prazer. É o sexo pelo sexo, sem finalidade outra. Daí, sendo adultério o sexo praticado com outro que não seja o cônjuge (o que pressupõe, portanto, casamento), passaram a tratar a “fornicação” como se fosse referência ao sexo realizado antes do casamento. Da mesma forma, cumpre classificar o que seria essa “lascívia” a que se refere o “menor” dos apóstolos, como sendo um desejo incontrolável pelo sexo a ponto de abusar da moralidade pública e privada.
Já num primeiro momento é imperioso que afirmemos – e não nos esqueçamos – que a Bíblia é um livro escrito por homens. Além disso, esses homens são produtos de seu meio e de seu tempo.
(nesse ponto gosto sempre de relembrar uma das frases que mais gosto e que foi cunhada pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset: “eu sou eu e minhas circunstâncias).
Por que faço essa ponderação a respeito dos homens, seu meio e seu tempo? Simples: nós não podemos analisar os escritos de Paulo (e de ninguém), sem que juntos analisemos o contexto local e temporal em que se escreveu. Vamos a eles então, destacando as principais cidades: Corinto, Tessalônica e Roma.
Em que pese que ao tempo de Paulo tanto Corinto quanto Tessalônica – cidades de origem gregas – já eram cidades conquistadas pelo Império Romano, receberam de César direito a uma relativa autonomia que lhes permitia manter os costumes gregos. E quais eram eles? Pontuarei ...
1.       Na cidade de Corinto existiam templos que prestavam culto em homenagem a Afrodite e, nestes locais a prostituição era sagrada. Inclusive, a história informa que havia no templo da deusa Afrodite mil sacerdotisas – de cabelos tosquiados – que aos finais de tarde desciam até a cidade e vendiam seus corpos e que nessa cidade, toda mulher virgem devia ser possuída, ao menos uma vez, por algum estrangeiro para obter a proteção da cidade pela deusa e só então podiam voltar para casa e se casar. Dessa forma, os estrangeiros deixavam verdadeiras fortunas nesses templos.
2.     Na Tessalônica, a adoração de ídolos estimulava um clima de flagrante promiscuidade. Cabiros, deus padroeiro de Tessalônica, Dionísio, Afrodite e a deusa egípcia Ísis tinham todos algo em comum: uma adoração altamente sexualizada, cheia de orgias e bebedeiras. Relações extraconjugais e prostituição eram muito comuns, sendo que, influenciados por Roma, seus cidadãos tinham à sua disposição os serviços de um número incontável de homens e mulheres dispostos a satisfazer todos os seus desejos; e os médicos aconselhavam que esses desejos não fossem reprimidos.
3.       No que diz respeito à Roma, podemos achar na clássica obra de Petrônio, "Satyricon", (ressalvado os exageros próprios da sátira) a descrição – em detalhes – dos excessos e as desmedidas romanas, seja com relação às orgias dos banquetes ou o exagero de comidas e bebidas, num tempo em que as mulheres romanas – diferente das gregas – gozavam de maior liberdade, pois mesmo as esposas podiam circular nas ruas e participar dos banquetes (e consequentemente das orgias). Contudo, em Roma, a prostituição era ainda mais acentuada e visível nas ruas e nos banquetes.
Esse era o contexto dos tempos de Paulo. Mas qual foi a criação que Paulo recebeu de Gamaliel quando ainda era Saulo? A farisaica. Saulo/Paulo era fariseu e os fariseus se imaginavam “santos” e “separados” pela sua forma de “pensar Deus”. O próprio Jesus, mais de uma vez, apontou a arrogância dos fariseus em relação aos demais frequentadores das sinagogas. Ora, tendo sido doutrinado numa rígida moralidade judaica, ao mesmo tempo em que herdou de seu pai um título de cidadão romano, o jovem Saulo teria uma série de motivos para repudiar essas práticas sexuais, menos pelo sexo em si e mais pelo paganismo ritualístico que elas representavam no contexto religioso dos povos que idolatravam outros deuses.
Daí Paulo questionar o adultério (comum em Roma) e a prostituição (comum e importante na Grécia).
Quando nos vemos conhecedores desse contexto, temos mais condições de entendermos a rigidez de Paulo, como, por exemplo, quanto à recomendação do uso de véu, que ele só faz em Corinto já que lá as prostitutas tinham as cabeças raspadas, sendo que ele entendia – naquele contexto, naquele local – que o cabelo comprido seria um sinal de honra para a mulher.
E fica mais óbvio ainda em relação à contrariedade de Paulo em relação ao sexo. Elas seguramente vem da ideia que ele tinha do que seria "imoral" conforme a criação que ele teve e de como era visto no seu tempo.
Quando Paulo censura os coríntios que mantinham relações sexuais com prostitutas, estava admoestando-os para o fato de que o sexo com aquelas mulheres era forma de adoração a outros deuses, como os citados acima, de modo que não é forçoso se considerar que a intenção de Paulo era obter um afastamento total dos povos das igrejas gregas de tudo o que representasse o culto aos outros deuses, prática tão explorada na permissiva cultura greco-romana.
Logo, não tem relação com o sexo em si, mas com o que o sexo representava naquelas culturas. Aqueles povos estavam acostumados com toda forma de sexo sendo considerada como forma de honrarem seus deuses. A partir do momento que Paulo prega que há um só Deus, ele precisa pontuar o fato de que as pessoas deveriam se afastar das práticas que lembravam sua religião passada, como faz, por exemplo, quando critica a participação dos tessalonicenses no sacrífico de sangue, já que naquela cidade havia o culto a Cabiros (cuja mensagem era de libertação dirigida aos povos escravizados por Roma e privados de direitos civis) e que incluía sacrifícios de sangue para comemorar o seu martírio.
E daí, as diferentes igrejas viram o tempo passar, mas sempre parecendo se recusaram a enxergar o tempo como uma linha que só anda pra frente. E daí fizeram da “virgindade” um paradigma importantíssimo no aspecto religioso. Mas será que isso vem de Deus?
A principal garantia trazida pela virgindade – se é que se pode chamar de garantia algo tão irrelevante – é a de que em tese aquela mulher não foi tocada sexualmente por nenhum outro homem (ao menos pelas vias, digamos, ortodoxas) e, consequentemente, não haveria o risco de que a prole que viesse ao casal fosse maculada por sangue alheio, com o marido criando filho de outro como se fosse seu.
Não custa lembrar que a Igreja Católica, mãe de todas as demais, incentivou que o casamento fosse cada vez mais visto como um negócio jurídico a ser interessante para todas as partes (mas lembro que já era assim com Abraão e a maior prova é seu neto, Jacó que de tanto amar a Raquel, trabalhou por 14 anos para seu sogro Labão, tão bem contada por Camões).
O pai da mulher a ser desposada lhe instituía um dote a ser pago para o esposo. Uma vez imaculada a jovem, mais atraente se mostrava para aquele homem (e sempre se queria o representante das melhores famílias) e menor poderia ser o valor pago. Agora, uma vez tendo manchado sua honra e o nome da família, arrumar um casamento para a filha compreendia uma maior disposição financeira do pai e uma menor exigência quanto à posição social do marido. Ou seja, negócios... e que, a exemplo do que faziam gregos e romanos, enxergavam a mulher como um ser “menor”, que servia aos interesses primeiro do pai, depois do marido, tendo seu valor conforme o que se lhe via no corpo (o selo de sua castidade e pureza), a despeito de ser impossível se exigir qualquer sinal do homem.
E foi daí que a virgindade começou a ser importante.
Mas os tempos são outros. Se é que o há, são poucos os que vivem sob a expectativa de desposarem uma mulher que não foi de nenhum outro homem e os que assim o fazem, via de regra são movidos por um machismo de quem tem medo de ser objeto de comparação.
Nós não vivemos tempos de permissividade sexual, mas sim de tolerância a partir de uma perspectiva de que o casamento é menos um negócio entre famílias e mais um arranjo entre nubentes que, se se quiserem, se terão independentemente de seu passado.
Mas o que vejo nas igrejas é uma pregação pró-virgindade, pró-castidade, que leva com que pais, mães e membros da igreja, tentem-se guardiães da pureza alheia, sendo que a notícia de que uma mulher, uma jovem moça, ousou dar vazão à sua personalidade e ao seu desejo, é causa de alvoroço, censura, sumária condenação. É considerada uma apostata em seu próprio meio, simplesmente porque se permitiu olhar pra frente e não para um passado que não lhe representa.
Nada mais ridículo e estarrecedor.
Sexo é só sexo e nada mais. Não faz ninguém melhor e nem pior do que ninguém. Há doenças que vem do sexo? Também há formas de evita-las. Há a possibilidade de uma falsa filiação em razão de diferentes parceiros? Há a possibilidade de se aferir o “verdadeiro” pai (biológico). Há o problema do prazer? Prazer só é problema quando não tem.
Não estou pregando e nem defendendo a promiscuidade. Ainda que defenda que cada um dá o que é seu da forma que quiser e que não é da minha conta. Todo o excesso é condenável socialmente. Comida em excesso, bebida em excesso e até... sexo em excesso. Há convenções sociais – como havia no tempo de Paulo – que variarão conforme a sociedade e é preciso ser levar isso em conta. Ninguém morre quando se rompe um hímen e nem perde a salvação quem conheceu o prazer sexual. Hoje, a grande maioria que “transa” não faz pra adorar Ísis ou Afrodite (a não ser que a parceira tenha esse nome), mas “transa” porque o corpo também amadurece sexualmente.
A quantidade de parceiros sexuais, seja um único, sejam poucos, sejam muitos, não faz ninguém melhor e nem pior do que ninguém. Só faz com que a pessoa seja ela mesma, com sua história, suas experiências e seus valores formados a partir do que lhe é apresentado e, em vida, experimentado.
Me indigna que uma mãe se indigne porque a filha ou o filho são sexualmente ativos ainda que solteiros; me indigna que alguém se sinta no direito de afirmar como uma pessoa adulta explorará sua sexualidade; me indigna que as pessoas se castrem em nome de conveniências e por temerem censuras de quem se lhes dizem “irmãos” para “ajudar a suportar o sofrimento”, mas que na verdade são “vouyeres” do sexo do semelhante.
E se você por um acaso pensou: "se a virgindade não é importante, por que Deus criou a mulher com hímen?" eu te respondo: bom, primeiro – se é que Eva existiu – não sabemos se ela tinha hímen, só sabemos que no momento em que foi criada, ela era adulta e virgem. Mas o hímen serve não como um sinal de imaculada comunhão com Deus, mas sim para que a menina, criança que engatinha e brinca no chão, tenha seu corpo protegido da invasão de fungos e bactérias pela abertura vaginal. É uma proteção que permite que a criança do sexo feminino cresça saudável.
Não me cabe – e nem a ninguém – incutir minhas neuroses e frustrações sexuais ao outros, mas sim, que se permita que cada um descubra o indivíduo que é, tendo paz para estar em paz com o Deus que lhe quer pra si e que se Lhe quer pra seu.
E por fim, no primeiro texto desse blog defendo que a ninguém é dado imaginar o que Deus pensa ou o que Deus quer, porque sua ciência é muito superior à nossa ínfima capacidade intelectual. Mas eu não concebo que um Deus que é um ser infinito, transcendental, com um universo inteiro para reger, ocupe-se mais da vida sexual das pessoas do que de seu coração.
De nada adianta enxergar o sexo como algo santo e em “muitos restos” agir como se fosse o próprio demônio.
Assim como tudo é relativo, talvez a culpa que se propõe seja a maior vilã no trato entre as pessoas, devendo ser combatida com a necessária parcimônia que permita com que as pessoas sejam menos frustradas e mais felizes.
O que quiser fazer, se quiser fazer, faça! As consequências serão suas. O que quiser fazer, mas prefere não fazer, não faça! As consequências serão suas. Agora se quem quer fazer é o outro, fica na tua; as consequências serão dele e, como você não é ele, você não tem como saber quem ele é e nem porque faz.
Chega de barulho por causa do sexo que não é você quem faz. Se é que você me entende.

Um comentário:

  1. Excelente texto. Historicamente esclarecedor e firme e elucidativo no ponto principal. Concordo plenamente. Desvelar o milenar interesse financeiro por trás do instituto do casamento foi ótimo também. Soube igualmente associar ciência e religião sem trair uma nem outra. Mostrou bem o momento atual. Tomara que muitos que precisam ler isso de fato leiam. Mas, infelizmente, duvido. A hipocrisia é mais forte do que os tabus, como o próprio texto demonstra. Parabéns. Abraço.

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