... e se você pensou que ia
chegar aqui e me ver defendendo alguma tese de viabilidade do sexo fora do
casamento “à luz” dos textos da Bíblia se enganou. A Bíblia, enquanto livro, é
bastante clara no sentido de reprovar essa prática.
E então você pode estar se perguntando:
mas sobre o que será o texto se vai se falar sobre o que todas as igrejas já
falam? E eu respondo que o texto vai querer fazer uma abordagem
histórico-humana que leva a essa tendência a uma redação proibitiva.
É certo que no Novo Testamento ninguém
abordou mais a questão da sexualidade do que Paulo. Mas quem era Paulo? Paulo
era um judeu, fariseu, cujo nome hebraico era Saulo, bastante zeloso pela lei
de Moisés, altamente instruído, o que lhe fazia admirado pelo seu gênio
(moldado aos pés do mais famoso rabino de sua época) e pela sua eloquência.
Ele foi escolhido pelos seus compatriotas como membro do Sinédrio, e era um
rabi de notável capacidade sendo, também, cidadão romano em título herdado de
seu pai.
Paulo era inteligentíssimo e a
sua ascensão às camadas mais altas no poder religioso de então só atestam mais
essa informação. Certamente, aluno de Gamaliel que foi, não estudou apenas a
respeito das leis mosaicas, mas também conheceu e foi bem instruído a respeito
da filosofia grega e a sua evolução.
Mas também precisamos conhecer os
povos para quem Paulo mais pregou sobre sexualidade: Corinto, Tessalônica e demais
regiões que à época, dominadas pelo Império romano, correspondiam ao território
do que um dia foi a Grécia e hoje é a Turquia. Ainda assim, acham-se referências a
comportamentos sexuais também nas cartas aos Gálatas, aos Romanos e aos
Colossenses, em cujo mote central repousa no aconselhamento contra “adultério”,
“lascívia” e “fornicação”.
Antes de qualquer coisa, cumpre
fazer uma crítica a um costume adotado na interpretação literal apresentada
pelos exegetas bíblicos. Fornicação é o sexo experimentado única e exclusivamente
em nome do prazer. É o sexo pelo sexo, sem finalidade outra. Daí, sendo
adultério o sexo praticado com outro que não seja o cônjuge (o que pressupõe,
portanto, casamento), passaram a tratar a “fornicação” como se fosse referência
ao sexo realizado antes do casamento. Da mesma forma, cumpre classificar o que
seria essa “lascívia” a que se refere o “menor” dos apóstolos, como sendo um desejo
incontrolável pelo sexo a ponto de abusar da moralidade pública e privada.
Já num primeiro momento é
imperioso que afirmemos – e não nos esqueçamos – que a Bíblia é um livro escrito
por homens. Além disso, esses homens são produtos de seu meio e de seu tempo.
(nesse ponto gosto sempre de
relembrar uma das frases que mais gosto e que foi cunhada pelo filósofo
espanhol Ortega y Gasset: “eu sou eu e minhas circunstâncias).
Por que faço essa ponderação a
respeito dos homens, seu meio e seu tempo? Simples: nós não podemos analisar os
escritos de Paulo (e de ninguém), sem que juntos analisemos o contexto local e
temporal em que se escreveu. Vamos a eles então, destacando as principais
cidades: Corinto, Tessalônica e Roma.
Em que pese que ao tempo de Paulo
tanto Corinto quanto Tessalônica – cidades de origem gregas – já eram cidades
conquistadas pelo Império Romano, receberam de César direito a uma relativa
autonomia que lhes permitia manter os costumes gregos. E quais eram eles?
Pontuarei ...
1. Na
cidade de Corinto existiam templos que prestavam culto em homenagem a Afrodite e,
nestes locais a prostituição era sagrada. Inclusive, a história informa que havia no templo da deusa Afrodite mil
sacerdotisas – de cabelos tosquiados – que aos finais de tarde desciam até a
cidade e vendiam seus corpos e que nessa cidade, toda mulher virgem
devia ser possuída, ao menos uma vez, por algum estrangeiro para obter a
proteção da cidade pela deusa e só então podiam voltar para casa e se casar.
Dessa forma, os estrangeiros deixavam verdadeiras fortunas nesses templos.
2. Na
Tessalônica, a adoração de ídolos estimulava um clima de flagrante
promiscuidade. Cabiros, deus padroeiro de Tessalônica, Dionísio, Afrodite e a
deusa egípcia Ísis tinham todos algo em comum: uma adoração altamente
sexualizada, cheia de orgias e bebedeiras. Relações extraconjugais e
prostituição eram muito comuns, sendo que, influenciados por Roma, seus
cidadãos tinham à sua disposição os serviços de um número incontável de homens
e mulheres dispostos a satisfazer todos os seus desejos; e os médicos
aconselhavam que esses desejos não fossem reprimidos.
3. No
que diz respeito à Roma, podemos achar na clássica obra de Petrônio,
"Satyricon", (ressalvado os exageros próprios da sátira) a descrição –
em detalhes – dos excessos e as desmedidas romanas, seja com relação às orgias
dos banquetes ou o exagero de comidas e bebidas, num tempo em que as mulheres
romanas – diferente das gregas – gozavam de maior liberdade, pois mesmo as
esposas podiam circular nas ruas e participar dos banquetes (e consequentemente
das orgias). Contudo, em Roma, a prostituição era ainda mais acentuada e
visível nas ruas e nos banquetes.
Esse era o contexto dos tempos de
Paulo. Mas qual foi a criação que Paulo recebeu de Gamaliel quando ainda era
Saulo? A farisaica. Saulo/Paulo era fariseu e os fariseus se imaginavam “santos”
e “separados” pela sua forma de “pensar Deus”. O próprio Jesus, mais de uma
vez, apontou a arrogância dos fariseus em relação aos demais frequentadores das
sinagogas. Ora, tendo sido doutrinado numa rígida moralidade judaica, ao mesmo
tempo em que herdou de seu pai um título de cidadão romano, o jovem Saulo teria
uma série de motivos para repudiar essas práticas sexuais, menos pelo sexo em
si e mais pelo paganismo ritualístico que elas representavam no contexto
religioso dos povos que idolatravam outros deuses.
Daí Paulo questionar o adultério
(comum em Roma) e a prostituição (comum e importante na Grécia).
Quando nos vemos conhecedores desse
contexto, temos mais condições de entendermos a rigidez de Paulo, como, por
exemplo, quanto à recomendação do uso de véu, que ele só faz em Corinto já que lá as prostitutas tinham as cabeças raspadas, sendo que ele
entendia – naquele contexto, naquele local – que o cabelo comprido seria um sinal
de honra para a mulher.
E fica mais óbvio ainda em
relação à contrariedade de Paulo em relação ao sexo. Elas seguramente vem da ideia que ele tinha do que seria "imoral" conforme a criação que ele teve e de como era visto no seu tempo.
Quando Paulo censura os coríntios
que mantinham relações sexuais com prostitutas, estava admoestando-os para o
fato de que o sexo com aquelas mulheres era forma de adoração a outros deuses,
como os citados acima, de modo que não é forçoso se considerar que a intenção
de Paulo era obter um afastamento total dos povos das igrejas gregas de tudo o
que representasse o culto aos outros deuses, prática tão explorada na permissiva
cultura greco-romana.
Logo, não tem relação com o sexo
em si, mas com o que o sexo representava naquelas culturas. Aqueles povos
estavam acostumados com toda forma de sexo sendo considerada como forma de honrarem
seus deuses. A partir do momento que Paulo prega que há um só Deus, ele precisa
pontuar o fato de que as pessoas deveriam se afastar das práticas que lembravam
sua religião passada, como faz, por exemplo, quando critica a participação dos tessalonicenses
no sacrífico de sangue, já que naquela cidade havia o culto a Cabiros (cuja
mensagem era de libertação dirigida aos povos escravizados por Roma e privados
de direitos civis) e que incluía sacrifícios de sangue para comemorar o seu
martírio.
E daí, as diferentes igrejas
viram o tempo passar, mas sempre parecendo se recusaram a enxergar o tempo como
uma linha que só anda pra frente. E daí fizeram da “virgindade” um paradigma
importantíssimo no aspecto religioso. Mas será que isso vem de Deus?
A principal garantia trazida pela
virgindade – se é que se pode chamar de garantia algo tão irrelevante – é a de
que em tese aquela mulher não foi tocada sexualmente por nenhum outro homem (ao
menos pelas vias, digamos, ortodoxas) e, consequentemente, não haveria o risco
de que a prole que viesse ao casal fosse maculada por sangue alheio, com o marido
criando filho de outro como se fosse seu.
Não custa lembrar que a Igreja
Católica, mãe de todas as demais, incentivou que o casamento fosse cada vez
mais visto como um negócio jurídico a ser interessante para todas as partes
(mas lembro que já era assim com Abraão e a maior prova é seu neto, Jacó que de
tanto amar a Raquel, trabalhou por 14 anos para seu sogro Labão, tão bem contada por Camões).
O pai da mulher a ser desposada lhe
instituía um dote a ser pago para o esposo. Uma vez imaculada a jovem, mais
atraente se mostrava para aquele homem (e sempre se queria o representante das
melhores famílias) e menor poderia ser o valor pago. Agora, uma vez tendo
manchado sua honra e o nome da família, arrumar um casamento para a filha
compreendia uma maior disposição financeira do pai e uma menor exigência quanto
à posição social do marido. Ou seja, negócios... e que, a exemplo do que faziam
gregos e romanos, enxergavam a mulher como um ser “menor”, que servia aos
interesses primeiro do pai, depois do marido, tendo seu valor conforme o que se
lhe via no corpo (o selo de sua castidade e pureza), a despeito de ser
impossível se exigir qualquer sinal do homem.
E foi daí que a virgindade
começou a ser importante.
Mas os tempos são outros. Se é
que o há, são poucos os que vivem sob a expectativa de desposarem uma mulher
que não foi de nenhum outro homem e os que assim o fazem, via de regra são
movidos por um machismo de quem tem medo de ser objeto de comparação.
Nós não vivemos tempos de
permissividade sexual, mas sim de tolerância a partir de uma perspectiva de que
o casamento é menos um negócio entre famílias e mais um arranjo entre nubentes
que, se se quiserem, se terão independentemente de seu passado.
Mas o que vejo nas igrejas é uma
pregação pró-virgindade, pró-castidade, que leva com que pais, mães e membros
da igreja, tentem-se guardiães da pureza alheia, sendo que a notícia de que uma
mulher, uma jovem moça, ousou dar vazão à sua personalidade e ao seu desejo, é
causa de alvoroço, censura, sumária condenação. É considerada uma apostata em
seu próprio meio, simplesmente porque se permitiu olhar pra frente e não para
um passado que não lhe representa.
Nada mais ridículo e
estarrecedor.
Sexo é só sexo e nada mais. Não
faz ninguém melhor e nem pior do que ninguém. Há doenças que vem do sexo?
Também há formas de evita-las. Há a possibilidade de uma falsa filiação em
razão de diferentes parceiros? Há a possibilidade de se aferir o “verdadeiro”
pai (biológico). Há o problema do prazer? Prazer só é problema quando não tem.
Não estou pregando e nem
defendendo a promiscuidade. Ainda que defenda que cada um dá o que é seu da
forma que quiser e que não é da minha conta. Todo o excesso é condenável
socialmente. Comida em excesso, bebida em excesso e até... sexo em excesso. Há
convenções sociais – como havia no tempo de Paulo – que variarão conforme a
sociedade e é preciso ser levar isso em conta. Ninguém morre quando se rompe um
hímen e nem perde a salvação quem conheceu o prazer sexual. Hoje, a grande
maioria que “transa” não faz pra adorar Ísis ou Afrodite (a não ser que a parceira
tenha esse nome), mas “transa” porque o corpo também amadurece sexualmente.
A quantidade de parceiros
sexuais, seja um único, sejam poucos, sejam muitos, não faz ninguém melhor e
nem pior do que ninguém. Só faz com que a pessoa seja ela mesma, com sua
história, suas experiências e seus valores formados a partir do que lhe é
apresentado e, em vida, experimentado.
Me indigna que uma mãe se indigne
porque a filha ou o filho são sexualmente ativos ainda que solteiros; me
indigna que alguém se sinta no direito de afirmar como uma pessoa adulta
explorará sua sexualidade; me indigna que as pessoas se castrem em nome de
conveniências e por temerem censuras de quem se lhes dizem “irmãos” para “ajudar
a suportar o sofrimento”, mas que na verdade são “vouyeres” do sexo do
semelhante.
E se você por um acaso pensou: "se
a virgindade não é importante, por que Deus criou a mulher com hímen?" eu te respondo: bom,
primeiro – se é que Eva existiu – não sabemos se ela tinha hímen, só sabemos
que no momento em que foi criada, ela era adulta e virgem. Mas o hímen serve
não como um sinal de imaculada comunhão com Deus, mas sim para que a menina, criança
que engatinha e brinca no chão, tenha seu corpo protegido da invasão de fungos
e bactérias pela abertura vaginal. É uma proteção que permite que a criança do
sexo feminino cresça saudável.
Não me cabe – e nem a ninguém –
incutir minhas neuroses e frustrações sexuais ao outros, mas sim, que se
permita que cada um descubra o indivíduo que é, tendo paz para estar em paz com
o Deus que lhe quer pra si e que se Lhe quer pra seu.
E por fim, no primeiro texto
desse blog defendo que a ninguém é dado imaginar o que Deus pensa ou o que Deus
quer, porque sua ciência é muito superior à nossa ínfima capacidade
intelectual. Mas eu não concebo que um Deus que é um ser infinito, transcendental,
com um universo inteiro para reger, ocupe-se mais da vida sexual das pessoas do
que de seu coração.
De nada adianta enxergar o sexo
como algo santo e em “muitos restos” agir como se fosse o próprio demônio.
Assim como tudo é relativo, talvez
a culpa que se propõe seja a maior vilã no trato entre as pessoas, devendo ser
combatida com a necessária parcimônia que permita com que as pessoas sejam
menos frustradas e mais felizes.
O que quiser fazer, se quiser
fazer, faça! As consequências serão suas. O que quiser fazer, mas prefere não
fazer, não faça! As consequências serão suas. Agora se quem quer fazer é o
outro, fica na tua; as consequências serão dele e, como você não é ele, você
não tem como saber quem ele é e nem porque faz.
Chega de barulho por causa do
sexo que não é você quem faz. Se é que você me entende.
Excelente texto. Historicamente esclarecedor e firme e elucidativo no ponto principal. Concordo plenamente. Desvelar o milenar interesse financeiro por trás do instituto do casamento foi ótimo também. Soube igualmente associar ciência e religião sem trair uma nem outra. Mostrou bem o momento atual. Tomara que muitos que precisam ler isso de fato leiam. Mas, infelizmente, duvido. A hipocrisia é mais forte do que os tabus, como o próprio texto demonstra. Parabéns. Abraço.
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